“As pessoas lutam para manterem as suas vidas numa belle époque imaginária, como se a pandemia não existisse” (MARZAGÃO, Silvia Felipe, 2020)

O quotidiano pátrio vem, desde março do corrente ano, sofrendo talvez as maiores transformações da era contemporânea, uma vez noticiado no Brasil o primeiro caso do Coronavírus.

Inexistente, ainda, vacina para imunizar a população contra a doença, a epidemia cresce a cada dia, tendo sido recomendado a todos, como tentativa de conter o contágio, o isolamento social.

Nos mais variados municípios foi decretada a já tão conhecida por nós quarentena.

A paralisação de setores da economia bem como a redução da movimentação em outros setores não sobrestados vêm redundando em uma crise econômica substancial.

Na mesma esteira, o aumento da convivência familiar, que basicamente se tornou constante, fez crescer os casos de violência doméstica e os mais diversos tipos de conflitos entre parentes, mesmo quando não dividem a mesma residência (é o caso dos genitores já separados que detêm a guarda compartilhada do filho em comum, por exemplo).

Como não poderia deixar de ser, o Direito, que rege todas as relações sociais, também se vê diariamente desafiado por questões totalmente novas ou simplesmente por mudanças de funcionamento repentinas de situações corriqueiras.

O novo contexto, instaurada em solo brasileiro a Pandemia que assola também o resto do mundo, é marcado por uma volatilidade, que, não raro, faz surgir questões para as quais ou não há a correspondente previsão normativa ou inexiste qualquer precedente judicial.

Verifica-se, ainda, o risco de um colapso do Poder Judiciário, que espera receber uma avalanche de Demandas.

Cabe salientar que até mesmo os prazos dos processos existentes antes da Pandemia enfrentaram suspensões, assim como muitos dos atos presenciais típicos do litígio judicial, como audiências e sessões de julgamentos.

Eis que certas decisões revestidas de caráter emergencial nem sempre estão sendo proferidas em tempo hábil, de forma a evitar danos maiores, ou, quando o são, podem estar contaminadas pela generalização, deixando de analisar os pormenores do caso concreto em exame.

É o que a prática vem denunciando nos casos que envolvem alimentos, dos genitores para seus filhos.

No Brasil, embora a regra, atualmente, seja a guarda compartilhada, segue sendo usual que o filho resida com a mãe, e que, basicamente, o compartilhamento da guarda com o pai se resuma a finais de semana alternados e a uma visita em algum dia útil da semana.

O isolamento social fez com que um dos genitores, não raro a mãe, tenha ficado ainda mais sobrecarregado, vez que se tornou desaconselhável deslocar, com frequência, os filhos de uma residência a outra.

Tal situação gera um desgaste emocional para todos os envolvidos, sendo responsável, também, por um desequilíbrio financeiro, vez que as despesas do genitor que permanece com a criança durante a Pandemia, por óbvio, sobem.

Na mesma esteira, muitos foram os genitores que perderam seus empregos ou que tiveram as suas rendas reduzidas, seja por suspensão de contrato de trabalho, seja por redução da jornada de trabalho, seja por falência de seus negócios ou, ainda, por menor demanda pelo serviço prestado.

Uma vez vivenciado o lockdown, o Conselho Nacional de Justiça, na Resolução 62, houve por determinar o sobrestamento do único caso de prisão civil admitida no Brasil, aquele do devedor de alimentos (limitou-se a sanção à prisão em regime domiciliar), já que o menor trânsito dentro dos estabelecimentos prisionais e o menor número de acautelados nesses estabelecimentos são formas de minimizar o contágio, protegendo não só a massa carcerária, mas também todos os servidores e prestadores de serviço que atuam nesses locais (para mais informações, “Prisões em tempos de Coronavírus: um mea culpa do Judiciário?”).

Desafortunadamente, a ausência de previsão para o recolhimento do devedor de alimentos em regime totalmente fechado no sistema prisional enfraquece, consideravelmente, o caráter coercitivo da decisão que estabelecera o quantum a ser pago a título de alimentos.

É importante que qualquer medida afeta aos alimentos destinados a menores seja tomada pela via judicial, vez que se trata de questão essencial, diretamente ligada à subsistência dos indivíduos.

Além dos inadimplementos irresponsáveis, assiste-se ao boom da propositura das Ações Revisionais, pelos genitores que, conscientes dos seus deveres oriundos do poder familiar, buscam driblar suas obrigações no que toca à pensão alimentícia destinada ao filho.

Mencionado o efeito genérico da crise econômica ocasionada pela COVID19, muitos dos Autores das Revisionais estão obtendo, liminarmente, reduções nos seus encargos (observação prática).

Por outro lado, também se aplica ao presente contexto o ditado popular segundo o qual “enquanto uns choram, outros fazem lenços”: há setores que cresceram substancialmente durante a Pandemia, como aqueles de marketing digital, de entregas a domicílio, de venda de produtos de escritório para home office…

Logo, conclui-se que os efeitos genéricos da crise econômica gerada pela Pandemia não são alegações aptas a gerar presunção absoluta da redução da capacidade contributiva do genitor no sustento do seu filho.

Infelizmente, o contexto atual de crise abre margem para que pais, insatisfeitos com os valores anteriormente estabelecidos a título de pensão alimentícia, contestem suas obrigações, a miúde imbuídos de espírito revanchista em relação ao ex cônjuge, a fim de prejudicá-lo e de dificultar sua nova vida fora do matrimônio.

Se, por um lado, é verdade que há escolas que reduziram suas mensalidades e serviços que suspenderam suas cobranças, não se pode olvidar que o menor que passa a estar todo o tempo dentro de casa redunda em um maior gasto com energia elétrica, com água, talvez com alimentação.

Quanto ao argumento de que as despesas com lazer despencam a zero, este não se sustenta, na medida em que os pais que permanecem com os filhos na própria residência, via de regra ocupados com os seus trabalhos, exercidos agora em home office, acabam despendendo consideráveis montantes para mantê-los entretidos.

Mesmo quando o genitor está em casa, não necessariamente goza de maior disponibilidade para acompanhar o filho em suas atividades diárias, donde a contratação de ajudante doméstica ou babá segue necessária.

Na mesma medida, nenhum dos custos fixos para a manutenção do menor simplesmente desaparece porque houve uma redução no rendimento do genitor.

Do tradicional binômio possibilidade-necessidade que rege as pensões alimentícias (possibilidade de quem presta e necessidade daquele a quem se destinam os alimentos), emerge com grande destaque o terceiro elemento: a proporcionalidade.

Assim, eventual dificuldade financeira de um dos genitores não pode sobrecarregar o outro, uma vez que essa sobrecarga lhe afeta subsistência.

Na hipótese de efetiva diminuição na renda de um dos pais, não há que se impor ao outro genitor uma contribuição desproporcional no sustento filho.

Aqui podem ser convocados os ditos alimentos avoengos: pode o genitor sobrecarregado, tendo o filho demandado em Ação Revisional, pleitear o chamamento ao feito dos avós, para que estes complementem o valor que o genitor em crise não está apto, no momento, a saldar.

Por outro lado, também se faz possível o ajuizamento de Revisional para aumentar o valor dos alimentos, já que existem, sim, pessoas cuja renda cresceu bastante durante o novo contexto social.

Note-se, ademais, que há profissionais que já estão habituados a oscilações na sua renda, assim como empresas em que a receita sofre amplas variações sazonais, de modo que a simples juntada, aos autos, por exemplo de um balancete de sociedade empresarial em que a receita apresenta diminuição a partir de março não basta para corroborar a crise supostamente oriunda do Coronavírus: é preciso que seja apresentado o balancete do mesmo período nos anos anteriores, caso contrário, pode-se tratar, simplesmente, de uma demanda menor do seu produto ou serviço em determinada época (fato comum à maioria dos negócios).

Qualquer decisão liminarmente proferida sem que tenha sido feita minuciosa análise do caso, alicerçando-se em um contexto genérico e valendo-se da Covid19 como mero argumento retórico, gera uma situação de periculum in mora reverso, pois a manutenção de determinada redução nos alimentos destinados ao menor, tendo em vista o longo período de tramitação de uma Demanda judicial, pode lhe trazer consequências diretas na sua sobrevivência, as quais não serão retroativas (Teoria do Risco Inverso).

Não por acaso, o Projeto de Lei n.º 1.627/2020iv, de autoria da Senadora Soraya Thronicke (PSL/MS), encaminhado ao Congresso Nacional, propôs que “ao devedor de alimentos que comprovadamente sofrer alteração econômico-financeira, decorrente da pandemia, poderá ser concedida, por decisão judicial, a suspensão parcial da prestação, em limite não superior a 30% (trinta por cento) do valor devido, pelo prazo de até 120 dias, desde que comprovada a regularidade dos pagamentos até 20 de março de 2020 (…)”.

Parece-nos razoável que, desde que devidamente comprovada a redução da renda do prestador de alimentos, estando esta diminuição diretamente atrelada aos efeitos do Coronavírus, seja concedida uma redução no valor a ser prestado, limitada, contudo, a percentual que não comprometa a subsistência do alimentando e válida por prazo determinado.

Caso não seja estabelecido lapso certo de duração para as alterações nos valores das pensões alimentícias estabelecidas em Revisionais ajuizadas em virtude da Pandemia, a cada fase em que o país apresente algum grau de recuperação econômica, poderá o outro genitor propor nova Demanda Revisional, gerando, por motivos óbvios, caos no Judiciário, excesso de Ações e total insegurança jurídica quanto à questão.

A conclusão a que se aporta, por conseguinte, é a de que cada caso levado ao Judiciário há de ser analisado, mesmo que em meio a uma enxurrada de Demandas similares, como único e irrepetível, sendo averiguadas, em pormenores, todas as provas e alegações produzidas, mantendo-se como mote que a presunção de redução da renda do prestador de alimentos, em tempos de Covi19, é meramente relativa – de forma alguma absoluta.


i Marcella Apocalypse é advogada, especialista em Ciências Penais pelo IEC PUC Minas, militante também no Direito de Família.

ii MARZAGÃO, Silvia Felipe; NEVARES, Ana Luiza Maia; XAVIER, Marília Pedroso. Coronavírus: impactos no Direito de Família e Sucessões. Indaiatuba, SP, Editora Foco, 2020. Extraído deste site.

iii Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/328262/prisoes-em-tempos-de-coronavirus-ummea-culpa-do-judiciario e em https://mapocalypse.adv.br/artigos/).

iv O Projeto de Lei n.º 1.627/2020 “dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito de Família e das Sucessões no período da pandemia causada pelo Coronavírus SARS-CoV2 (CoVid19)”.

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