A Lei n.º 13.964/2019, popularmente conhecida como “Pacote Anticrime”, veio para “aperfeiçoar a legislação penal e processual penal”, de acordo com a sua ementa.

O enfoque do presente texto reside na novidade disposta no parágrafo único, do artigo 316, do Código de Processo Penal (CPP), introduzida pela referida Lei:

“Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”.

Aporta-se, então, instintivamente, à conclusão de que se exige do julgador maior cautela quando da decretação de prisões provisórias, cujo relaxamento pode ser pleiteado na ausência de análise quanto à necessidade da sua manutenção, transcorrido o lapso de 90 dias da sua decretação.

Em Minas Gerais, no final de 2019, ofertou o Ministério Público denúncia contra inúmeros corréus, no bojo de Operação criminal denominada “Cataclisma”.

Aduz a acusação que se trataria de organização criminosa, composta por policiais civis e militares, servidores públicos estaduais e municipais, despachantes, empregados e sócios de pátios credenciados junto ao DETRAN, a qual seria atuante desde o ano de 2011, nos Municípios de Santa Luzia e Lagoa Santa/MG, com o propósito de obtenção de vantagens ilícitas para a emissão de alvarás para liberação de veículos e outros documentos, participação no recebimento de diárias pelos pátios de apreensão de veículos, recebimento de quantia indevida para a realização de vistorias e emissão de documentos, realização de lavagem de dinheiro, dentre outras condutas supostamente delitivas.

No curso do procedimento investigativo, houve o Parquet por representar pela prisão temporária do suposto líder da organização criminosa, a qual, decretada, foi convertida em preventiva, na data de 02.12.2019.

Impetrado Habeas Corpus, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais, autos n.º 1.0000.20.032772-4/000, em r. Decisão liminarmente proferida pelo Desembargador Plantonista, na data de 21.03.2019, foi convertida a preventiva do réu em comento em medidas cautelares do art. 319 do CPP.

Eis que, julgado o mérito do referido writ, na data de 28.08.2020, houve a Colenda Câmara julgadora por cassar a liminar anteriormente concedida, tendo reestabelecido a prisão preventiva do suposto líder da organização criminosa sub judice.

Dentre as teses defensivas, foi suscitado o direito de relaxamento da prisão, em virtude desta não ter sido analisada no lapso de 90 dias, em conformidade com a norma disposta no parágrafo único, do art. 316, do CPP.

Inobstante, aduziram os doutos julgadores mineiros que não haveria que se cogitar na referida ilegalidade, uma vez que, em se tratando de alteração legislativa cuja vigência se iniciara em 23.01.2020, apenas e tão-somente a partir desta data é que se iniciaria a contagem do prazo de 90 dias:

“No mais, o impetrante sustenta o desrespeito ao disposto no art. 316, parágrafo único, do CPP. Nesse ponto, destaca-se que tal norma foi incluída pela Lei n.º 13.964/2019, que entrou em vigor apenas em 23.01.2020.
Sendo assim, somente a partir desse marco que o lapso temporal de 90 dias deve ser computado. Não obstante esse fato, a prisão do paciente foi devidamente analisada dentro do prazo legal, seja pelo Juízo primevo (no dia 20.03.2020), seja por este Tribunal…” (Excerto do Ac. proferido pela 8ª. Câm. Crim. do TJMG, no HC 1.0000.20.032772-4/000, Rel. Des. Guilherme de Azeredo Passos – JD Convocado, p. 02.09.2020).

Neste ponto, oportuna a discussão que se propõe no presente artigo: qual a natureza da norma contida no parágrafo único, do art. 316, do CPP?

Essa natureza é determinante na aplicação do referido dispositivo legal no tempo.

Vislumbra-se que a Colenda 8ª. Câmara Criminal do TJMG, no caso em apreço, houve por compreender se tratar de norma processual penal pura e simples, já que dispôs que a exigência trazida à baila pelo novo dispositivo legal apenas teria se iniciado com a entrada em vigor da lei que o inaugurara, a Lei n.º 13.964/2019.

Com a devida vênia, não é esse o nosso entendimento, propondo-nos, a partir de então, nova interpretação quanto ao ponto destacado.

Efetivamente, a aplicação no tempo das normas processuais é regida pela regra do art. 2º do CPP, que dispõe quanto à sua aplicação imediata (tempus regit actum), sendo irrelevante que aportem benefícios ou prejuízos ao réu. Dessa forma, os atos processuais praticados quando vigentes à lei anterior permaneceriam válidos.

Já as normas materiais, que detêm como escopo assegurar direitos e garantias, em conformidade com disposição insculpida no art. 5º, inciso XL, da Constituição da República de 1988 (CR/88), não retroagem, “salvo para beneficiar o réu” (retroatividade benéfica).

No entanto, o fato de determinada norma se encontrar inserida em texto processual, como o CPP, não induz à conclusão, inarredavelmente, de que se trata de norma também de natureza processual: o mesmo raciocínio se aplica às normas abarcadas por textos de direito material, como o Código Penal (CP).

Diz-se heterotópica a norma de conteúdo processual que se encontra inserida em diploma de direito material, ou vice-versa – norma material em texto processual.

Filiamo-nos ao entendimento de que, para normas processuais inseridas em compilados materiais, dar-se-á a regência pelo Princípio do Tempus regit actum, não se cogitando da retroatividade, ainda que para beneficiar o réu.

Inobstante, nessa esteira, em se tratando de normas materiais dispostas em diplomas processuais, abrir-se-á a possibilidade à retroatividade benéfica.

Retornemos, então, à norma contida no art. 316, parágrafo único, do CPP: levando-se em conta que dispõe quanto à restrição da liberdade, regula direito constitucional fundamental, de modo que, embora inserida no CPP, trata de direito material, correspondendo, então, à norma heterotópica, cuja aplicação pode retroagir, desde que se preste a beneficiar o réu (novatio legis em melius).

Assim sendo, no caso prático central do presente artigo, decretada a prisão preventiva do réu em 02.12.2019, de acordo com a novidadeira regra constante do parágrafo único, do art. 316, do CPP, não seria possível se cogitar que aquela haveria de ter sido revista após 90 dias da sua decretação, portanto, no início do mês de março de 2020, o tendo sido, no entanto, apenas em 20.03.2020?

Trata-se de inovação normativa recente, de modo que ainda não solidificado entendimento jurisprudencial ou doutrinário quanto ao tema, incumbindo, então, aos advogados de defesa buscarem a construção das próprias teses, sempre em busca do melhor interesse do constituinte, à luz dos direitos e garantias fundamentais constitucionais.


Marcella Apocalypse é advogada criminalista, especialista em Ciências Penais pelo IEC-PUC Minas.

Crédito da foto: Freepik

FALE CONOSCO

    .